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1984: Tratado em Forma de Literatura



Considerações preliminares


Por literatura designamos a modalidade artística de expressão de emoções e ideias valendo-se de palavras, na forma de textos conotativos marcadamente subjetivos. Etimologicamente aludia ao ensino das primeiras letras, mas depois passou a expressar uma maneira de recriação do mundo segundo sentimento ou compreensão do autor[1]. A obra 1984, de George Orwell (Eric Arthur Blair, 1903-1950) é uma peça literária, mais precisamente uma subespécie da ficção científica, isto é, narrativa imaginária como visão futurística, com a presença fortemente influente de fator tecnológico[2]. A obra aqui estudada é do tipo distopia ou mau topos, lugar onde entre outras coisas reinaria a opressão[3]. No caso, temos uma situação política e social opressiva, de vigilância e controle absolutos, exercido por um poder central omnisciente e omnipresente, um Estado que controla a sociedade valendo-se de um dispositivo tecnológico, a teletela, reunindo todos os elementos de uma distopia.


O autor


O autor é George Orwell é o pseudônimo de Eric Arthur Blair, como dito nas considerações preliminares, um escritor, jornalista inglês ensaísta, dedicado aos temas políticos. Tinha cidadania inglesa, mas nasceu na Índia, em 1903, quando esta era colônia britânica, onde seu pai serviu. A exemplo do pai, trabalhou na administração colonial na terra em que nasceu. Veio a falecer em 1950. Tuberculose foi a causa mortis. Teve como eixo temático dos seus escritos o abuso do poder, segundo um de seus biógrafos[4].


A época e os lugares


A Orwell testemunhou, na época em que viveu, a Revolução Russa, o domínio do nazismo e do fascismo sobre a Alemanha, a Itália e a Europa, a grande depressão iniciada em 1929 e a polarização do mundo entre fascismo e comunismo, além de ter sido também contemporâneo da Segunda Guerra Mundial. Os pólos constituídos pelos comunistas e fascistas, que se antagonizavam embora ambos defendessem alguns pontos comuns.


O controle da sociedade pelo Estado era um dos pontos compartilhados. Tinham em comum uma compreensão vitimista de uma mesma parcela da sociedade, propugnavam pelo Estado sob domínio de um partido único, praticassem o culto à personalidade de líderes, adotassem a ética teleológica e tivessem a visão do conflito como a mais poderosa alavanca dos movimentos históricos[5]. O compartilhamento deste e de outros pontos, presentes na prática política, quando não na teoria, como algum grau de impregnação com o positivismo, é facilmente identificável nas fortes convicções que estimulam o uso da força e a restrição da liberdade.

O marxismo teórico sabidamente contesta o positivismo, mas Leandro Konder, um marxista histórico, identifica o que chamou de incrustações positivistas entre os marxistas[6]. A alegada distinção entre o marxismo dos teóricos e as práticas políticas dos partidos comunistas e socialistas encontra dificuldade por se tratar de pensamento que se apresenta como uma filosofia da práxis.


Os pontos comuns entre fascistas, de um lado, e comunistas e socialistas, de outro, têm levado à interpretação da obra de Orwell aqui estudada como um libelo dirigido tanto ao fascismo como ao comunismo e ao socialismo aqui referido ao chamado socialismo real. Considerar que a distopia de 1984 é dirigida somente ou principalmente ao fascismo carece de plausibilidade.

O autor, que esteve nove meses na guerra civil espanhola, combatendo ao lado das forças republicanas, entre as quais estavam tropas soviéticas, sentiu a violenta repressão praticada pelos companheiros contra quem ousava divergir, minimamente que fosse da doutrina, da doutrina política e social emanada de Moscou, revelada pela prática.


A época de radicalismo não conteve Orwell, que teve a ousadia de divergir dos seus pares. Foi considerado trotskista por integrar-se a um grupo denominado Poum, considerado de extrema esquerda, antifascista, mas também opositor do que muitos denominam estalinismo. Ele concluiu que Moscou, que representava o socialismo real, estava determinado a eliminar sucessivamente o Poum, os anarquistas e os socialistas. Sendo esquerdista, concluiu que “o Partido comunista, bem como a Rússia Soviética, lutavam agora contra a revolução”[7].


A época da existência de Orwell era caracterizada por conflitos, intolerância, opressão política e violência, inclusive vindas da parte que ele apoiava de tal modo que foi para a guerra lutar por ela. 

Um dos lugares em que ele esteve foi a Espanha, onde foi lutar ao lado das tropas soviéticas enviadas para participar da guerra civil Espanhola. Teve que abandonar a Espanha para não ser morto pelos companheiros comunistas, conforme a retrocitada obra de Ricks. A decepção pode ter direcionado suas reflexões para o tipo de poder que, conforme ele acreditava, chegou a decretar a sua própria morte.


Os pontos comuns entre fascistas e comunistas podem ter inspirado a distopia em que três superpotências lutam entre si, alternando alianças, embora sob diversos pontos sejam semelhantes. A Segunda Grande Guerra Mundial foi testemunhada por Orwell na Inglaterra, tendo visto os bombardeios de Londres. A aliança formada, durante este grande conflito, entre os países capitalistas e a URSS, contra o eixo formado pela Alemanha, Itália e Japão pode ser comparada às três superpotências do macro ambiente de 1984. Após a citada guerra os que lutaram lado a lado contra o eixo logo se tornaram rivais na guerra fria testemunhada por ele, que escreveu a distopia em que potências aliadas se tornavam rivais e os rivais de ontem tornavam-se aliados. A obra escrita em 1948 e publicada em 1949 é contemporânea destes fatos.


Registre-se, ainda, que Orwell foi funcionário do serviço colonial britânico na Índia. Teve, portanto, experiência própria com serviços de controle e dominação. Mas não se deixou encantar pelo exercício do poder. Parece ter adquirido repulsa pelos mecanismos de controle e de opressão. Mais tarde, quando lutou na Espanha, sentiu na pele a opressão que havia testemunhado na Índia, porém, muito mais profunda e abrangente. O colonialismo britânico, como todos os colonialismos, exercia um tipo de autoritarismo, isto é, controlava condutas objetivando interesses. O totalitarismo que decepcionou George Orwell visava o domínio das consciências. Enquanto o colonialismo buscava o controle dos seus opositores, o totalitarismo visava destruí-los moral e fisicamente.


Os personagens


A literatura é uma forma de comunicação que veicula conhecimentos relacionados com a cultura do meio social de que trata. 1984 é uma obra que trata da cultura política. Ambiente, personagens e enredo são elementos constitutivos da expressão literária. Sucede, todavia, que estes mesmos elementos estão presentes também nos ensaios e relatórios de pesquisa no âmbito das chamadas ciências sociais, históricas, humanas ou da cultura. É possível, portanto, encontrar a expressão de entendimentos comuns entre a ficção e as obras de não-ficção.


1984 descreve o ambiente de uma sociedade absolutamente vigiada e controlada por um Leviatã hobbesiano hipertrofiado, em um contexto internacional formado por três grandes Estados ou blocos de poder que vivem perpetuamente em guerra, que formam alianças temporárias de dois deles contra um terceiro, que mudam, sem cerimônia, a condição de aliado para adversário. O conflito entre as três potências legitima o controle absoluto exercido pelo Estado sobre as suas sociedades, conforme relatado. Os Estados assim descritos podem ser interpretados como personagens institucionais, que afinal são personalidades jurídicas de Direito Público. Mas quem eram os personagens da ficção propriamente ditos, apresentados como pessoas naturais?


Encontramos entre os protagonistas de 1984 Winston Smith, Julia, O’Brien e o Grande Irmão. Winston é um homem de meia idade, funcionário do Departamento de Documentação do Ministério da Verdade, membro do Partido Externo. O seu trabalho, no Ministério da Verdade, consistia em reescrever e alterar dados de acordo com a orientação do Partido. Conheceu, no trabalho, Julia, também funcionária do Ministério da Verdade. Apaixonaram-se e passaram a encontrar-se às escondidas, porque eram proibidos os relacionamentos entre membros do partido de sexo diferente.


Winston é rebelde, mas não é revolucionário, porquanto não tem um modelo acabado de uma nova sociedade e de um novo homem formado por esta nova sociedade. Falta a Winston a presunção demiúrgica que inspira reengenharia social e humana.


O’Brien, também funcionário do Ministério da Verdade, homem sedutor, engana Winston e Julia fazendo-se passar por membro da resistência. Convence-os a aderir a dita resistência e usa isso para torturá-los. O Ministério da Verdade ocupa lugar de destaque no enredo de 1984. Orwell denuncia com isso a coluna de sustentação do totalitarismo: usar do poder de definir o que é verdade e mentira. O trabalho de Winston, que reescreve e altera dados, denuncia a necessidade que o totalitarismo tem de enganar e mentir, redefinido a realidade, seja pela ressignificação compulsória das palavras, pela redução do léxico para assim limitar o pensamento e dominar pelo controle das consciências. Acredita na reengenharia social e por meio desta na construção de um novo homem.


O’Brien, como agente do poder opressivo, engana e tortura convicto de defender o bem. É o retrato do ativista que atua nas instituições aparelhadas. Os regimes totalitários têm em figuras como esta uma de suas bases de sustentação, como fica evidente na obra de Orwell. A tecnologia potencializa enormemente o controle, mas é preciso que agentes do poder opressor atuem usando dos mais diversos meios, usando instrumentos tecnológicos e novas ou velhas técnicas convencimento e ludibrio. Estudos destas técnicas, não no campo da ficção, mas obras de estudiosos, tratam de métodos usados na política para influenciar e até dominar consciências. Exemplo disso é a obra Maquiavel Pedagogo[8].


Julia é uma funcionária do Ministério da Verdade que se ocupa de tarefas de menor importância. Namora Winston e é atraída por O’Brien para uma cilada, com se fosse a resistência. É torturada por O’Brien.


Emmanuel Goldstein é um ex-integrante da cúpula do partido, que se tornou opositor do regime. Alguns o consideram semelhantes Leon Trotsky (1879 – 1940), sendo ambos judeus e revolucionários dissidentes, é autor de “Teoria e prática do coletivismo oligárquico”, sendo apenas uma fonte de pensamentos, sem participação nas ações.


O Grande Irmão ou irmão mais velho é um personagem fictício, que representa o Estado Protetor e guia. A ética teleológica do Partido ou do Grande Irmão, consiste na adoção de uma moral situacional, condicionada a fins, diversamente da ética que entende sejam os valores perenes, que só podem ceder lugar a outro valor também ahistórico, hierarquicamente superior. Tal hierarquia também é perene, imune às conveniências e oportunidades das circunstâncias. A ética circunstancial do Grande Irmão tende a ser antropocêntrica, o que ao fim e ao cabo é uma forma de salvo-conduto para a arbitrariedade precariamente limitada pelo livre entendimento fundamentado nos fins.


A fundamentação aludida permite, com um pouco de criatividade e sem muitos escrúpulos, proporcionar uma de legitimidade meramente formal, sem que de fato, na prática, atenda aos requisitos éticos, jurídicos ou políticos do dever ser. A ética situacional permite a toda sorte de interesses particularistas. Não estamos reabrindo a discussão entre jusnaturalismo e juspositivismo. Apenas estamos sinalizando que o cosmocentrismo e o teocentrismo presentes nos fundamentos primeiros do Direito devem ter lugar no debate acadêmico e nas tratativas políticas que devem orientar a prática legiferante.


O exercício da judicatura, todavia, deve respeitar os limites semânticos do que foi decidido pelos legisladores, devendo o Poder Executivo obedecer a este mesmo princípio. A hermenêutica literalista pode conduzir a péssimas interpretações, mas a literalidade não deve ser confundida com literalismo. Na obra de Orwell não temos a presença do Judiciário, mas de um poder único, indiferenciado em suas funções, que tanto pode legislar, como julgar e executar as decisões segundo a separação das funções do poder caberia ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário.


A técnica de dominação


A técnica de dominação usa um método nomeado como duplipensar, que enseja a ressignificação das palavras, permitindo a acomodação de contradições pela confusão semântica, de modo análogo a dialética que concilia tese e antítese, apaziguando as contradições lógicas, segundo o modo que já foi metaforicamente nomeado como senhora de costumes cognoscitivos fáceis. Assim, o pensamento, que é uma espécie de alvenaria cujos tijolos são as palavras, pode ser dominado pelo controle da semântica, submetendo o léxico a um significado obrigatória, proibindo ou criminalizando palavras e até impondo o uso obrigatório de vocábulos prenhes de conceitos ideológicos. Assim, na ficção de Orwell o poder faz circular palavras de ordem como liberdade é escravidão e paz é guerra.


Anos mais tarde seria produzida uma técnica de dominação pelo controle do léxico, não como ficção, mas expresso na forma de ensaio e de relatório de pesquisa. Na área de linguística, a Teoria transformacional, do pensador politicamente revolucionário A. Noam Chomsky (1928 – vivo), descreve a influência ou domínio da gramática explícita sobre uma gramática implícita do inconsciente das pessoas[9]. Registre-se que Orwell escreveu o livro 1984 antes de Chomsky publicar sua teoria.


A obra de Orwell é a descrição perfeita do totalitarismo, cuja natureza é o domínio das consciências, diversamente do autoritarismo que pretende controlar certas condutas e defender alguns interesses. A retrocitada obra de Pascal Bernardin, Maquiavel pedagogo ou Ministério da Reforma psicológica, também um estudo dotado de rigor metódico, diversamente da ficção, desnuda as técnicas de manipulação e domínio das consciências. O conjunto formado pelo ambiente, os personagens com os seus atos, somados aos fatos tem o nome de enredo, que pode ser entendido como um conjunto de fatores determinantes, predisponentes ou adjuvantes do que se constitui no sentido do conjunto de uma peça literária. O que nos diz o enredo de 1984?


O enredo


A síntese da obra 1984 é um mundo distópico. Descreve a insegurança de quem vive sob a vigilância das teletelas; convive com uma situação em que um poder determina o que é verdade; pode modificar o significado das palavras; e contra o qual não há defesa, não havendo a quem recorrer contra ele. Pior: não existe segurança quanto a normatividade vigente, seja na esfera civil ou penal. Os textos produzidos pelo Ministério da Verdade são reescritos e alterados conforme o arbítrio do Poder único, autêntico editor da nação. Leis escritas que mudam de significado ao escapando ao entendimento de pessoas letradas são de fato inexistentes.


A ausência de leis minimamente estáveis é também ausência de segurança jurídica. Onde um poder pode tudo, sem que outro poder o contenha não existe previsibilidade quanto a incidência sanções penais, administrativas ou cíveis. O que Orwell denuncia é a consequência da supressão do velho bom sistema de tripartição das funções do Poder do Estado, proposto na obra Do espírito das leis[10]. Só existe uma certeza: o sistema social e político deve ser considerado bom, mais do que isso, deve ser obrigatoriamente havido como excelente.


A convicção de que o sistema distópico é o que serve a sociedade contraria a ideia do falibilismo defendida por John Locke[11], argumentando que todos devemos admitir a nossa própria falibilidade. Isso deveria promover o entendimento segundo o qual o outro pode ter razão, ao invés de nós. A tolerância resultaria, portanto, da admissão da nossa falibilidade. A intolerância seria uma resistência àquilo que com toda certeza consideramos errado, sob pena sermos omissos ou coniventes com o erro. Outro parâmetro para a intolerância legítima é a intolerância do outro conforme Karl Popper.[12]


A intolerância praticada por poder irresistível e irrecorrível é um pesadelo imaginável, mas verossímil. Teria o autor da ficção feito uma denúncia de situações que ele testemunhou, expressa de modo artístico, valendo-se de uma caricatura para expressar com mais clareza a realidade? A reunião de fatores que podem não se achar todos juntos nas experiências históricas, sob a forma de tipo idealizado como forma de enfatizar com clareza as peculiaridades de uma realidade é usada em pesquisa sociológica, pela metodologia weberiana[13], sob a denominação de ideal tipo. 1984 seria então uma espécie de relatório elaborado sob inspiração weberiana, da situação que ele viveu na Espanha?


A literatura pode expressar sentimentos, pode exercer influência na percepção que é impactada pelos sentimentos. 

Por isso pode despertar para a realidade dos fatos, embora pertença à imaginação. A pesquisa trabalha com a cognição, que começa pela percepção. A Escola do Racionalismo pós-crítico descreve os paradigmas de ciência, entendidos como um conjunto de pressupostos e referência às mais diversas, amparadas por uma metodologia e uma teoria, como incomunicáveis entre si[14]. A polarização e a desqualificação do outro, observadas no mundo político, acomete também o mundo da ciência. Não surpreende que a intolerância e a violência brotem das divergências. Quando uma das partes tem poder para perseguir, podendo prender, desapropriar, torturar e até eliminar pessoas, sem que se possa resistir nem se tenha a quem recorrer a distopia de instala.


Eric Arthur Blair, George Orwell, ousou se insurgir contra um poder que redefinia e modificava o relato dos fatos. Ousou denunciar os abusos de quem poderia difamá-lo ou até matá-lo. Foi forte e sábio o suficiente para livrar-se das próprias convicções e teve talento para narrar fatos valendo-se de uma ficção que permitiu até a identificação de personagens dos fatos. Qualquer semelhança com a realidade não pode ser mera coincidência.


Admitindo que este seja o significado da obra, qual seria o seu alcance? Poderia ser advertência para os riscos representados por realidades diversas daquela que Eric A. Blair viveu na Espanha e testemunhou como contemporâneo da Segunda Guerra mundial? Situações distintas das guerras, sem matanças ostensivas, praticadas sob o manto de outras estruturas de poder que não aquelas de 1984 poderiam representar o mesmo perigo?


A essência do mal: o controle do léxico e a tutela dos cidadãos


1984 expressa uma situação que não precisa ser nas circunstâncias testemunhadas por Orwell. Não precisa ter apenas quatro órgãos nomeados ostensivamente como ministério da Verdade, armado da lógica de que o Partido não é infalível por não errar, mas que não erra ser infalível; em segundo lugar o Ministério da Paz, quando se entende que paz é guerra e liberdade é escravidão. Um terceiro ministério, o da fartura, que pode ser proporcionado pelo assistencialismo do Grande Irmão, sem a menor preocupação com a dependência que isso possa gerar. A fartura pode resultar da redefinição da semântica, podendo a privação e a necessidade serem assim redefinidas. Por fim um quarto ministério, o do Amor, cujo significado Orwell não disse, mas pode conviver com crimes sem definição legal, penas sem prévia cominação na lei, crimes de opinião, sem que se saiba qual é a verdade do momento.


O autor da obra que ora examinamos não chegou a ver a monarquia hereditária da Coreia do Norte, com o nome de República Popular; nem partidos mudando de nome de modo semelhante a retificação de dados pelo Ministério da Verdade. Mas antecipou tudo isso e divulgou aos quatro ventos a existência desses métodos. Pregou no deserto. A incomunicabilidade dos paradigmas, a imunização cognitiva, o viés de confirmação das convicções, principalmente quando associadas ao amor, a verdade tornada oficial ou oficiosa, a paz e a abundância.


Tais atributos proporcionam a quem segue discurso tão virtuoso a agradável sensação de superioridade moral e intelectual. Registre-se que as duas sensações de superioridade não exigem muito dos seus adeptos. Podem ser alcançadas com um léxico restrito que se contenta com uns poucos bordões por ser próprio de pensamentos curtos e sem limites bem definidos. Pode citar autores que não leu, ou leu, mas não entendeu muito bem, como relata Leandro Konder na obra retrocitada A derrota da dialética. Pode usar palavras sem ter discernimento claro do que significam. Pode apontar culpados para as suas desventuras: os que recusam o amor e propagam o ódio.


Instituir crime desvinculado de conduta, baseado em sentimentos, ainda que seja o ódio, é altamente perigoso, porque sentimentos são difíceis de provar, são involuntários e enquanto não se convertem em conduta são inócuos. Também é perigoso multiplicar tipos penais, principalmente quando se institui crime de perigo abstrato, como possuir um bem que eventualmente pode ser usado de modo criminoso, porque praticamente tudo pode ser usado para o crime ou pode representar algum perigo. Mas tudo isso pode ser pregado em nome do amor, ainda que não haja um ministério com esse nome.


A tutela dos cidadãos progride sutilmente por meio de controles e interdições protetoras. Desde longa data os maiores de sessenta anos só podem casar-se em regime de separação total de bens, norma protetora na forma de interdição parcial. A restrição aos saleiros, açucareiros, palitos de dentes nas mesas de restaurante seguem a trilha da interdição parcial e sutil, embora não haja risco adicional para terceiros. O grande Irmão controla cada vez mais, sempre para proteger, sempre em nome do interesse social.


A desqualificação da divergência é um meio de silenciar a divergência, que o duplipensar harmoniza com a defesa das livres manifestações políticas. Teses contrárias podem ser cultivadas. A semelhança com o Ministério da verdade não é coincidência. Duas obras contraditórias como O Estado e a revolução[15]; de Vladimir Ilich Lênin; e O que fazer[16], do mesmo autor, defendem teses contraditórias, nada obstante tenha sido publicadas em curto intervalo de tempo. A primeira defende o poder para os soviets (comitês), na forma de uma sociedade politicamente anárquica. A Segunda defende a direção da Revolução conduzida pelo Comitê do Partido, sob o sugestivo nome de “centralismo democrático”. Não é preciso entrar no mérito de cada proposição para reconhecer que elas são contraditórias.


É possível que a ficção literária contribua grandemente para a compreensão dos fatos, atos e discursos, principalmente no campo dos fenômenos sociais e políticos.

Certos aspectos podem ser enfatizados na literatura de modo que nem sempre bons ensaios e pesquisas conseguem. É o que podemos observar ao examinarmos o conteúdo e a forma da obra de Eric Arthur Blair, George Orwell, 1984, cujo remete para um futuro que ao tempo em que o livro foi lançado, 1949, ainda era distante. Mas na realidade tratava de acontecimentos do passado que então eram recentes, com a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial, e até de acontecimentos presentes, como a Guerra fria que era travada naquele momento.

O autor conseguiu lançar advertências e fazer denúncias de situações futuras como se fosse contemporâneo delas, revelando a rara capacidade de vacínio nas ciências sociais, coisa mais frequente nas ciências da natureza, muito difícil quando o objeto do conhecimento é o homem. Não se trata de previsão determinista, mas condicionada a determinadas práticas e limitada às probabilidades ou vagamente às tendências, mas ainda assim valiosa.


A situação descrita em 1984 é mais detalhada na obra A Revolução dos bichos[17], do mesmo autor, que descreve uma revolução libertária que termina sendo liberticida, expressa na forma de fábula, em que o fenômeno descrito em 1984 é ambientado em uma revolução, aqui citado para afastar possíveis dúvidas quanto a interpretação dada por nós a obra aqui estudada.



Referências

BERNARDIN, Pascal. Maquiavel pedagogo ou Mistério da reforma psicológica. São Paulo : Ed. Ecclesiae, 2013.

CHOMSKY, Noam. Linguagem e pensamento. 3ª. ed. Petrópolis : Vozes, 1971.

KONDER, Leandro. A derrota da dialética. 2ª. Ed. São Paulo : Expressão Popular, 2009.

_______ Introdução ao fascismo. 2ª. Ed. São Paulo : Expressão Popular, 2009.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5ª. São Paulo:  Editora Perspectiva, 1997.

LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. 2ª. Ed. São Paulo : Abril Cultural, 1978 (Os pensadores).

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12ª. Ed. São Paulo : Cultrix, 2004.

MONTESQUIEU, C. L. S. Do espírito das leis. São Paulo : Abril Cultural, 1985.

POPPER, Karl R. Sociedade aberta universo aberto. Lisboa : Don Quixote, 1987.

RICKS, Thomas E. Churchill & Orwell (a luta pela liberdade). 1ª. Rio de Janeiro : Zahar, 2019

ULIANOV, Vladmir Ilyich (Lênin). O Estado e a revolução. São Paulo : Expressão Popular, 2007.

ULIANOV, Vladmir Ilyich (Lênin). O que Fazer. São Paulo : Hucitec, 1978.

WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. São Paulo : Cortez; Campinas : Unicamp, 1992.




[1] MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12ª. Ed. São Paulo : Cultrix, 2004.

[2] Idem ibidem.

[3] Idem ibidem.

[4] RICKS, Thomas E. Churchill & Orwell (a luta pela liberdade). 1ª. Ed. Rio de Janeiro : Zahar, 2019.

[5] KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. 2ª. Ed. São Paulo : Expressão Popular, 2009.

[6] KONDER, Leandro. A derrota da dialética. 2ª. Ed. São Paulo : Expressão Popular, 2009.

[7] RICKS, Thomas E. Churchill & Orwell (a luta pela liberdade). 1ª. Rio de Janeiro : Zahar, 2019, p. 77.

[8] BERNARDIN, Pascal. Maquiavel pedagogo ou Mistério da reforma psicológica. São Paulo : Ed. Ecclesiae, 2013.

[9] CHOMSKY, Noam. Linguagem e pensamento. 3ª. ed. Petrópolis : Vozes, 1971.

[10] MONTESQUIEU, C. L. S. Do espírito das leis. São Paulo : Abril Cultural, 1985.

[11] LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. 2ª. Ed. São Paulo : Abril Cultural, 1978 (Os pensadores).

[12] POPPER, Karl R. Sociedade aberta universo aberto. Lisboa : Don Quixote, 1987.

[13] WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. São Paulo : Cortez; Campinas : Unicamp, 1992.

[14] KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5ª. São Paulo:  Editora Perspectiva, 1997.

[15] ULIANOV, Vladmir Ilyich (Lênin). O Estado e a revolução. São Paulo : Expressão Popular, 2007.

[16] ULIANOV, Vladmir Ilyich (Lênin). O que Fazer. São Paulo : Hucitec, 1978.

[17] ORWELL, George. A Revolução dos bichos. Rio de Janeiro : Temporalis, 2021.

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