A arte, como uma das expressões supremas da cultura humana, tem o seu lugar também no campo religioso. Não há nenhuma dúvida de que a natureza religiosa do homem, bem como as suas aspirações pelo eterno podem ser representadas. A altura dos prédios religiosos e sua aparência imponente, por exemplo, revelam a esfera do sagrado como a região mais elevada e profunda do ser, assinalam que o temor e o fascínio são os sentimentos que devem evidenciar o encontro do homem com o seu criador.
A crença numa salvação mecânica, realizada por meio de sacramentos e cerimônias, como a que é defendida pelo catolicismo romano, manifesta-se na decoração interna de seus prédios religiosos, como se pode ver na centralidade do altar eucarístico, nas vestes sacerdotais, velas, incensos, sinos etc. Por outro lado, a doutrina protestante, segundo a qual a salvação, sendo pessoal e mediante a fé, começa pelo ouvir da Palavra de Deus, mostra-se na figura do púlpito ocupando a posição mais destacada no edifício religioso, bem como na elevação da tribuna.
O desenho do peixe, por exemplo, tornou-se por razões históricas em um símbolo do cristianismo, enquanto a figura de uma pomba ou a do fogo, lembrando os fatos históricos relacionados à descida do Espírito Santo sobre Jesus e, posteriormente, sobre os cristãos no dia de Pentecostes, pode significar adesão à crença pentecostal na atualidade das manifestações sobrenaturais e miraculosas da divindade.
Todas as representações até agora citadas expressam a natureza religiosa do homem, ou seja, têm natureza antropológica. Todas são passíveis de serem adequadamente lidas. A grande questão, entretanto, é se a própria divindade deve ser representada para fins de culto e se tal representação pode ser lida de modo a ensinar a verdade.
De acordo com o pensamento católico, as imagens de esculturas têm valor pedagógico, tanto por ajudar as pessoas a aprenderem sobre Deus como por estimularem o culto. No século VI, quando o culto às imagens não se tinha generalizado na Igreja Romana, o papa Gregório, o “Grande”, começava a defender a introdução de quadros nos templos como uma “muleta” para os iletrados. São suas as seguintes palavras: “Uma coisa é adorar um quadro, outra é aprender em profundidade, por meio dos quadros, uma história venerável. Pois aquilo que a escrita torna presente para o leitor, as pinturas tornam presente para os iletrados, para aqueles que só percebem visualmente, porque nas imagens os ignorantes vêem a história que devem seguir, e aqueles que não conhecem o alfabeto descobrem que podem, de certa maneira, ler. Portanto, especialmente para o povo comum, as pinturas são o equivalente da leitura”.
Noutra perspectiva, o entendimento protestante, em plena consonância com a orientação bíblica, apesar de admitir o valor da arte, conclui que as imagens têm valor negativo, tanto para ensinar acerca de Deus como para fortalecer o culto.
Deus é o “numinoso”, uma realidade inefável que deve impressionar o espírito humano num encontro imediato, ou seja, sem a intervenção da imaginação. Os artifícios criativos da mente humana só limitarão a divindade, criando ídolos. No Areópago de Atenas, o apóstolo Paulo discursou: “O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens; nem tampouco é servido por mãos de homens, como que necessitando de alguma coisa; pois ele mesmo é quem dá a todos a vida, e a respiração, e todas as coisas (...) Para que buscassem ao Senhor, se porventura, tateando, o pudessem achar; ainda que não está longe de cada um de nós; porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos; como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois somos também sua geração. Sendo nós, pois, geração de Deus, não havemos de cuidar que a divindade seja semelhante ao ouro, ou à prata, ou à pedra esculpida por artifício e imaginação dos homens.” (Atos 17: 24-29).
Santo Agostinho disse: “Pense o homem o que quiser: um ser criado não se compara ao criador. Exceto Deus, tudo o que realmente existe foi feito por Deus. Quem pode calcular exatamente a distância entre o criador e a criatura? O salmista declara, por isto: ‘Não há entre os deuses quem te seja semelhante, Senhor’. Não explicou quanto difere de Deus, porque é impossível dizer. V. Caridade preste atenção. Deus é inefável. É mais fácil exprimir o que não é do que aquilo que é. Pensas na terra. Deus não é isto. Pensas no mar. Deus não é isto. Em tudo que existe na terra, homens e animais. Deus não é isto. Tudo o que brilha no céus, as estrelas, o sol e a lua. Pensa nos Anjos, Virtudes, Potestades, Arcanjos, Troncos, Sedes, Dominações. Deus não é isto. E o que é então? Somente pude declarar o que não é. Perguntas o que é? ‘O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu’(cf I Cor. 2:9). Por que procuras que exprima a língua o que o coração não percebeu? ‘Não há entre os deuses quem te seja semelhante, Senhor, nem que seja comparável a tuas obras’”.
O conhecimento de Deus é diferente do conhecimento intelectivo que forma imagens concretas ou abstratas a partir de informações enviadas pelos sentidos físicos. No conhecimento intelectivo, a imagem é dominada pelo sujeito, podendo ser alterada pelo poder da imaginação. Entre o homem e Deus não há a relação sujeito-objeto para que o homem possa trazer Deus para a sua mente sob a forma de imagem, antes, há uma relação pessoa finita-pessoa infinita, onde cabe ao homem sair de si e mergulhar em Deus. Não é Deus que entra na mente humana sob a forma de imagem, mas é o homem que entra em Deus pelo abandono de si. De acordo com Max Scheler: “Este caminho, que leva a se perder a si mesmo, para ganhar novamente em Deus, no plano ético se chama humildade, e no plano intelectual ‘intuição’ pura. Tal desobstrução é o risco mais extremo, e, ao mesmo tempo, para o ser da alma mesma, o movimento aberto à existência da ousadia. Esta é a renúncia radical à força e ao valor próprio, o puro ‘se despedir de Deus colocando Cristo sob as asas da galinha’(Lutero), que tão brilhantemente foi descrito há pouco tempo por William James. Em um trecho de seu livro A experiência religiosa em sua variedade, intitulado por ele como ‘Conversão’, ele tece comentários notáveis acerca dos dois tipos de conversão, a ‘voluntária’ e a do ‘abandono de si’. Ele mostra, em uma série de exemplos, como este segundo tipo possui uma significação maior do que o primeiro.”
Embora seja tolerável que o homem use metáforas e símiles para falar de Deus, isso só acontece porque esta é a única forma possível de falarmos do inexprimível. No entanto, cada pessoa deve estar cônscia de que os termos são apenas figuras de linguagem. Atentemos para as observações de Santo Agostinho: “Refiras-te como quiseres à eternidade. Por isso fala como quiseres, porque, seja o que for que disseres, dirás menos do que é. Mas é preciso dizer alguma coisa, para poder pensar o que não se pode exprimir.” “Só ele é inefável, ele que ‘disse e tudo foi feito’. Disse e fomos feitos; mas nós não podemos dizer o que ele é. Seu Verbo, no qual ele nos criou, é seu Filho, para que nós, em nossa fraqueza, de algum modo o exprimíssemos, ele se fez fraco. Podemos pôr júbilo no lugar da palavra; trocar o verbo por uma palavra não podemos. ‘Jubilai, pois, diante do Senhor, terra inteira”.
A imagem esculpida desperta os sentidos físicos, criando inclinações afetivas que culminam na idolatria. A visão não pode ajudar a fé, pois se contrapõe a ela. “Porque andamos por fé, e não por vista”(II Cor. 5:7). “Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem” (Hebreus 11:1).
A fé, segundo a Bíblia, vem pelo ouvir e não pelo ver: “De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela Palavra de Deus”(Romanos 10:17)
É bom lembrar que Jesus veio na plenitude dos tempos (Gálatas 4:4), e, nesse período, não havia fotografia. Nenhum legítimo cristão contemporâneo a Jesus ousou fazer um desenho da sua pessoa . A sua imagem na cruz, que tanto querem representar, não é passível de reprodução, conforme a observação do profeta bíblico: “Como pasmaram muitos à vista dele, pois o seu parecer estava tão desfigurado, mais do que o de outro qualquer, e a sua figura mais do que a dos outros filhos dos homens” (Isaías 52: 14).
É bom lembrar que, segundo os evangelhos, Jesus foi chicoteado com um instrumento de várias pontas nas quais, de acordo com registros históricos, encontravam-se lâminas e pedaços de ossos. Seus cabelos e barbas foram arrancados. Uma coroa de espinhos penetrou na sensível pele da cabeça. Bateram-lhe no rosto com murros e na cabeça com uma cana. Sem falar da própria crucificação que implicava em ter o corpo traspassado e as juntas separadas. Segundo a profecia messiânica, foi esse o comportamento do salvador: “As minhas costas ofereci aos que me feriam, e a minha face aos que me arrancavam os cabelos; não escondi a minha face dos que me afrontavam e me cuspiam.” (Isaías 50: 6).
A imagem atual do Cristo glorificado ainda é mais difícil de ser representada. Disso testemunhou o apóstolo João no livro do Apocalipse: “E no meio dos sete castiçais um semelhante ao Filho do homem, vestido até aos pés de uma roupa cumprida, e cingido pelos peitos com um cinto de ouro. E a sua cabeça e cabelos eram brancos como a lã, como a neve, e os seus olhos como chama de fogo; e os seus pés, semelhantes a latão reluzente, como se tivessem sido refinados numa fornalha, e a sua voz como a voz de muitas águas. E ele tinha na sua destra sete estrelas; e da sua boca saía uma aguda espada de dois fios; e o seu rosto era como o sol, quando na sua força resplandece. E eu, quando o vi, caí a seus pés como morto....”(Ap. 1: 13-17).
João Calvino contestou violentamente a posição de Gregório segundo a qual as imagens são úteis para a instrução dos iletrados: “Quando, portanto, Jeremias (10:3) proclama que o lenho é o preceito da fatuidade, quando Habacuque (2:18) ensina que a imagem fundida é a mestra da mentira, por certo que daqui se deve deduzir esta doutrina geral: que é fátua e, mais ainda, mendaz tudo quanto das imagens hajam os homens aprendido acerca de Deus.”
As palavras do profeta Habacuque são muito claras: “Que aproveita a imagem de escultura, depois que a esculpiu o seu artífice? Ela é máscara e ensina mentira, para que quem a formou confie na sua obra, fazendo ídolos mudos? Ai daquele que diz ao pau: Acorda! E à pedra muda: Desperta! Pode isso ensinar? Eis que está coberta de ouro e de prata, mas dentro dela não há espírito algum. Mas o Senhor está no seu santo templo; cale-se diante dele toda a terra.” (Habacuque 2: 18-20).
Em Deuteronômio 4:15, 16, a Bíblia diz: “Guardai, pois, com diligência as vossas almas, pois nenhuma figura vistes no dia em que o Senhor, em Horebe, falou convosco do meio do fogo; para que não vos corrompais, e vos façais alguma imagem esculpida na forma de qualquer figura, semelhança de homem ou mulher ....”
No concílio de Elvira (séc. IV) se decretou (cânon trinta e seis) :“Resolveu-se que se não tenham nos templos representações pictoriais, assim que se lhes não pinte nas paredes o que se cultua ou adora.”
Na visão cristã, o culto a Deus é algo que deve acontecer com estímulos unicamente espirituais, tendo em vista a própria natureza de Deus: “Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade.”(João 4: 24).
Desse modo, ausência de imagens no templo protestante revela a crença de que o culto deve ser espiritual, com estímulo vindo de dentro e não de fora. Leland Riken, explicando a visão de culto dos puritanos ingleses do século XVII, disse: “Os puritanos chamavam seus templos de ‘casa de reunião’ num esforço para desviar a atenção do lugar físico para as atividades espirituais, as quais eram o verdadeiro âmago do culto da igreja. Para qualquer um que crê que a ‘beleza da igreja é toda interior.... e que devem ser simples’, tirar imagens visuais das igrejas é a única prática possível. Havia, como veremos, outras razões para o iconoclasmo puritano (principalmente a aversão à idolatria), mas a crença na primazia do culto espiritual da sua doutrina da igreja era a razão principal”.
Sigamos, portanto, às orientações do apóstolo Paulo:“... mas enchei-vos do Espírito; falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais; cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração” (Efésios 5:18,19).
Prof. Glauco Barreira Magalhães Filho
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